Não te parece estranho?
– Não te parece estranho?
– O quê?
– Tudo!
– Tudo?
– É! Tudo!
– Você viaja…
E viajou. Sua mente deixou aquele plano material. Rapidamente o som desafinado da banda que tocava esgueirou-se. O barulho de copos, risadas e todo o burburinho das conversas em rodas apequenaram-se até a insignificância. Sequer os odores e sabores permaneceram. Viajou na sua inteireza para fora de si, para fora dali. O corpo presente pendia sobre a cadeira. Os cotovelos sustentavam o dorso. Fechou os olhos e ficou estático. Não lhe deram muita bola. Não era raro algum incauto exagerar no consumo e ser nocauteado por algumas doses de um destilado qualquer. Daquele lado, longe dali, sua mente divagava, devagar. Longe dali, percorreu espaços que sequer Dali sonharia. Sonhou um sonho estranho. Não te parece estranho que, em meio à balburdia do Pub, aquele corpo, desafiante das leis da gravidade, passasse tão desapercebido? Estranho é o narrador se preocupar com isso, intrometendo-se naquilo que apenas deveria narrar. Narremos. Sua mente partiu para uma viagem sem precedentes na história daquele corpo. Talvez fosse o álcool, talvez fosse a amargura, talvez ambos. O fato é que para os demais que ocupavam a mesa, ele apenas teria dormido, um vacilo próprio de quem não tem culhões para a boemia. Fraco. Mas nada disso estava ao alcance daquela mente que agora sobrevoava campos em um pequeno planeta na periferia oposta, uma pequena rocha flutuante que, para assombro de muitos pastores, trazia em seus campos curiosas ovelhas. Seus olhos imateriais, e você há de pensar: “olhos? acaso o corpo não ficou lá longe? Sim, perdoe este narrador, afinal uma mente dispensa os glóbulos oculares e suas respectivas lentes corretivas, mas há que se compensar a fragilidade da linguagem com figuras, assim pode-se dizer o indizível para pessoas e ovelhas, eis a arte dos pastores. E, enquanto perdíamos tempo com retinas e nervos óticos, a mente errante da qual contamos a história já se encontrava numa zona que nem mesmo a mais ousada metáfora, a mais meticulosa analogia seriam capazes de descrever. A mente estava livre. Livre do tempo, livre do espaço. Livre da bisbilhotagem do narrador, que aqui apenas se limitará a dizer que a mente se foi.
– Hey, acorda.
– Oh, mano. O cara apagou.
– Fraco.
– Hey, não te parece estranho?
– O quê?
– Ele não respira…
Inerte, o corpo, vencido pela gravidade, estatelou-se no chão.