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Crônicas

Tempos confusos

Posted by Edgar on

Vivemos tempos confusos, pensou. Do outro lado da rua, dois garotos se estapeavam. Entre xingamentos e tabefes, o menor levava vantagem. Se valendo da leveza e rapidez, confiante de que a briga estava ganha, não percebeu o cruzado de esquerda. O sopapo atinguiu-lhe em cheio a bochecha. Desequilibrado, foi ao meio fio. Deu de testa contra os paralelepipedos. Com sorte, teria morrido ali mesmo, com o impacto. Mas o azar fez com que o crânio fosse esmagado pelas rodas do circular. Um dos olhos saltou da óribita e agora mirava, se é que pode-se dizer que mirava, as mãos trêmulas de uma senhora que tomava seu café no outro lado da rua. Ninguém notou, mas o circular em questão fazia o trajeto ao Paraíso, bairro que, apesar do nome, periférico, concentrava o populacho. Quando a polícia chegou ao local, o maior, dono do potente cruzado de esquerda, já se havia feito fumaça. A mulher de mãos trêmulas balbuciava algo ao oficial. Seus olhos fixos no olho que a fitava. O condutor jurava que não vira o garoto. Os passageiros, horrorizados com o atraso que lhes sucederia. Dino, o gato vira-latas que frequentava o beco, pos-se a cheirar a pasta encefálica que se misturava ao sangue do menino. Ai, Jesus, esclamou uma beata que deu com a cena enquanto vinha de mexericos com uma de suas irmãs de fé. Mal sabe ela e, para ser fiel ao relato, só virá a sabê-lo mais tarde, quando chegue em casa de sua filha, que o, palavras dela, “mais um desses garotos vagabundos de rua” era Rubinho, seu neto. Aliás, Rubinho era dessas crianças mimadas, criadas a pão-de-ló. Estudava em colégio chique, daqueles que davam goiabada com queijo fresco no lanche da tarde. Seus pais, aspirantes às altas rodas da sociedade, haviam prosperado no ramo da confeitaria. Jomar, o pai, dono de talentos ímpares no manuseio do açucar, havia criado uma bomba de creme que, perdoem-me o trocadilho, era um estouro. Cinara, a mãe, frequentadora assídua de toda e qualquer reunião na qual houvesse senhoras de bem, fazia o comercial. Juntos, fizeram muito dinheiro e logo decidiram que Rubinho teria educação de lorde. Duas quadras dali, César de nascimento, Cesão para os íntimos, olhava fixamente para a lousa. Dona Zulmira, professora de Estudos Sociais, inquiria aos demais. Onde está Rubinho, que não voltou do intervalo? Quando terminou seu nono cigarro, nem circular, nem oficiais, nem rabecão e muito menos Rubinho. A tarde voltava ao seu fluxo normal. Dino, o gato, petecava entre as patas o novo brinquedo. O olho. Vivemos tempos confusos, pensou novamente, enquanto pagava a conta.