A playlist toca uma velha música do Genesis, o vento sopra forte, um uivo se faz ouvir pela fresta da janela, mas apesar da pouca distância, reluto em fechá-la por completo. Faz frio lá fora e agora percebo que o cão que sempre costumava latir, sumiu.
Olho para a janela e vejo o meu reflexo. A imagem de mim mesmo se mistura a luminosidade âmbar das luzes do condomínio. Meu reflexo olha para mim ou eu olho para ele? Difícil saber…
Uma vez, num ônibus, voltando de uma viagem ao litoral, uma garota sentou-se ao meu lado. Sempre fui uma pessoas de poucos amigos, de poucas palavras. Eu vinha na poltrona do corredor. Muitos preferem a janela, mas quando se tem quase 1,90m, o corredor e a possibilidade de esticar as penas através dele é um pequeno luxo. Eu havia embarcado na rodoviária.
Naquela manhã eu havia terminado um namoro. Na verdade, haviam terminado comigo. Namoro de verão. Ela vivia no litoral, eu no interior. Passávamos alguns fins de semana juntos. Tenho boas lembranças daquele tempo, mas aquela era uma manhã triste. No auge dos meus 17 anos, a vida era uma incógnita!
A garota ficou com a poltrona da janela. Ajeitou sua mochila no compartimento de bagagens, pediu-me licença e sentou-se ao meu lado. Seu perfume era intenso. Tinha cabelos longos, lisos e que lhe caíam sobre os ombros. Num movimento delicado, puxou-os com os dedos para detrás da orelha, movimento que me permitiu, nas rápidas e discretas olhadelas de canto de olho, ver-lhe o perfil do rosto. Trajava jeans, uma blusa branca com desenhos cujo padrão eu não me recordo e trazia nas mãos um casaco cor de rosa. Ela era mais nova do que eu, talvez tivesse 15 ou 16 anos. Ciente da minha inabilidade em iniciar uma conversa trivial, apoiei a cabeça no encosto do banco e mergulhei nos meus pensamentos.
Já iniciada a subida da serra, quando o ônibus entrou no primeiro túnel, levei um susto. Ela havia segurado, com força, minha mão direita. Com a cabeça projetada para o peito, ela tinha os olhos fechados. A pressão de sua mão sobre a minha diminuiu quando o ônibus saiu do túnel. Ela soltou minha mão, me olhou envergonhada e disse:
– Desculpe, mas eu tenho medo desses túneis.
– Sem problemas — respondi sem saber ao certo o que dizer depois.
– Tem outros, né?
– Acho que sim, pelos menos mais dois.
Seu olhar procurava um ponto seguro, ela estava mais envergonhada do que eu.
– De que você tem medo? — perguntei depois de alguns segundos de silêncio.
– Não sei dizer, acho que é porque fica escuro.
– Você não precisa ter medo, eu já desci e subi essa serra várias vezes.
Antes que ela pudesse dizer algo, ela percebeu que outro túnel se aproximava. Seu olhar cruzou com o meu, havia ali um misto de angústia e cumplicidade. Lhe ofereci a mão. Ela fechou os olhos com um quase sorriso e o interior do ônibus escureceu. Feixes intercalados de luz amarelada, do interior do túnel, misturavam-se aos zumbidos e buzinas dos carros que vinham nas pistas paralelas ao ônibus. Nunca entendi porque as pessoas buzinavam dentro do túnel e a pressão da mão daquela garota sobre a minha dava a entender que aquilo a incomodava.
Aquele túnel era o mais longo, mas depois de um ou dois minutos, estávamos novamente na claridade de uma manhã cinza, como todas as manhãs na serra. Eu ainda segurava a mão dela, mesmo sabendo que daquele ponto em diante, não haveria mais túneis.
– Lugares escuros me dão medo — ela quebrou o silêncio.
– Mas não há porque ter medo, o escuro é apenas a ausência de luz.
Sempre fui metido a saber de tudo um pouco. Nessa época eu devorava livros sobre ocultismo e certamente devo ter tirado essa frase de algum deles.
– Você deve me achar boba.
Eu não soube o que dizer, apenas movi a cabeça em negativa. Até então, eu não havia reparado que, à exceção de duas senhoras que vinham nos primeiros bancos, um senhor que estava duas poltronas à frente e o próprio motorista, não havia mais ninguém no ônibus. Era uma segunda-feira, talvez um dia de pouco movimento.
– Às vezes demoro para dormir, por causa do escuro. Fico imaginando coisas.
– Coisas?
– Sim, coisas ruins que existem no escuro, na noite…
– Não existem coisas ruins no escuro — disse o menino que, 7 anos antes, se cagava nas calças de medo de ir do quarto ao banheiro no meio da madrugada! — Já parou para pensar que enquanto você está dormindo, tanta coisa boa acontece?
– Que coisas boas?
– Hum — pense, animal — tem pessoas que trabalham durante a noite. Médicos, policiais… o padeiro!
– O padeiro? — ela riu.
– Ué! Quando você acorda e come seu pão com manteiga, é graças ao padeiro, que na noite, sem medo do escuro, está trabalhando! — me senti um gênio da argumentação.
– Eu como pão de forma! — ela exclamou sorrindo para mim.
A playlist jogou um Paul Young na roda, fui catapultado para outras searas, outras lembranças… de um beijo roubado em uma festa a qual eu e o meu fiel escudeiro não havíamos sido convidados, beijo roubado da dona da festa, da garota mais bonita, que fez de mim capacho… maldito Paul Young! Voltemos ao ônibus.
Viemos o restante da viagem conversando trivialidades. Já em Sorocaba, eu desceria no corpo de bombeiros, ela iria até a rodoviária, onde alguém a esperava. Nos despedimos. Ela me acompanhou com os olhos enquanto eu desembarcava. Já na calçada, antes que o farol abrisse e o ônibus zarpasse, ela abriu a janela e disse:
– Meu nome é…
O motorista acelerou o ônibus, fazendo um ruído alto e o nome dela se perdeu entre a fumaça preta que o escapamento jogou na minha cara quando ele fez a troca de marcha. Até hoje ignoro o nome dela. Assim como ela deve ignorar o meu. Nunca mais a vi.
No auge dos meus 43 anos, a vida segue sendo uma incógnita…
E.